segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O simbolismo dos super-heróis

Agradeço novamente a todos que compareceram a minha palestra O simbolismo dos super-heróis, na Livraria Cultura. Para quem não pôde ir, eis um resumo do tema abordado.


História em quadrinhos: coisa de criança? Um mero produto de consumo? Histórias fracas e superficiais, como filmes de ação sem profundidade? Fantasia, fuga da realidade? Nada disso! As histórias em quadrinhos possuem uma grande profundidade. Os super-heróis não são apenas seres com um uniforme legal, feitos para vender bonecos, jogos e lancheiras. Existe algo de muito profundo nos heróis clássicos das histórias em quadrinhos.

Super-homem e a mitologia

A mitologia é a fonte onde bebem os criadores de super-heróis. Desde Gilgamesh, um dos mitos mais antigos de que se tem conhecimento, existe no imaginário a noção de um ser parte humano, parte divino, dotado de grandes poderes. Se pegarmos a mitologia grega, temos Hércules como o exemplo mais popular de herói. E Super-homem tem várias semelhanças com ele. Qual é o poder do semideus? Uma força incomensurável. E um dos poderes do Super-homem, um dos mais notáveis desde sua criação, em 1932, por Jerry Siegel e Joe Shuster? A força incalculável. Hércules era filho de Zeus – pai dos deuses – e uma mortal. Seu sangue divino era o que lhe conferia poderes. O Super-homem, a seu modo, também tem o poder no sangue, só que em vez de ser divino, ele é alienígena, uma adaptação aos tempos modernos e suas crenças. A analogia divina pode ser observada, porém, no fato de que o Super-homem veio dos céus, e por isso tem poderes. Hércules, a partir de seu primeiro trabalho, passou a usar a couraça do leão da Nemeia como sua roupa e proteção, como retratado em diversas de suas esculturas (ao lado). O Super-homem tem um uniforme, usando inclusive um emblema no peito.
Falar do Super-homem é falar dos super-heróis de uma maneira geral. O primeiro herói a figurar nas páginas dos quadrinhos com superpoderes, o modelo para os super-heróis seguintes. Ele representa basicamente as características fundamentais do que torna um super-herói um super-herói. É seu arquétipo: justo, altruísta, luta pela liberdade e pela verdade. Ele é um exemplo para os personagens dos quadrinhos e para os leitores. Sempre agindo pelo bem e usando todos os seus poderes em busca de uma sociedade melhor. Mais importante que seus poderes é sua moral, afinal poderes os supervilões também têm, o que faz um herói ser herói é sua ética e comprometimento com a justiça.


A comparação Super-homem e Batman
Outro herói clássico dos quadrinhos, muito popular há anos, é o Batman. Também engajado na luta pela justiça, adotou critérios altruístas, mas possui algumas diferenças em relação ao “pai dos super-heróis”. Batman não possui poderes. Seu intelecto e treinamento é o que o tornam um herói. Quando a comparação entre Super-homem e Batman vem à tona essa é uma das justificativas para que o Batman seja considerado mais heroico. É fácil deter um assalto a banco, por exemplo, quando se é invulnerável e sua força, insuperável. Batman, se levar um tiro na boca, morre. Sendo assim, ele é mais corajoso. Certo, mas o Super-homem também enfrenta adversidades que estão compatíveis com ele, reais ameaças a sua integridade física. O poder é justamente o que faz com que o Super-homem enfrente diariamente ameaças que não estão na alçada do Batman, mais um justiceiro das ruas, um combatente do crime. O Super-homem seria, por esse motivo, mais heroico, pois seus poderes lhe permitem, em vez de salvar uma vítima do crime, salvar o mundo inteiro de uma ameaça planetária. Por outro lado, Batman precisou desenvolver suas capacidades e precisa treinar todos os dias, enquanto o Super-homem nasceu com suas poderes, veio de graça. Enfim... a lista dos defensores de um e dos defensores de outro é grande. Não quero defender nem um lado, nem outro, considero que a reflexão é o que é mais importante.
Ainda na comparação entre os dois, cabe lembrar da pintura Escola de Atenas, de Rafael, em que estão representados no centro Platão e Aristóteles (ao lado). Nela, Platão aponta para cima, simbolizando o mundo das ideias, os ideais mais elevados. Já Aristóteles, seu discípulo, demonstra com sua mão que está mais no plano terreno, que se preocupa mais em trazer soluções que tenham efeito nos problemas sociais em vigor. O que isso tem a ver com o Super-homem e o Batman? O Super-homem está para Platão da mesma maneira que Batman para Aristóteles. Enquanto o Super é um idealista, que representa praticamente o ideal de perfeição humana, Batman é um pragmático, que preocupa-se com problemas pontuais da sociedade. Ele não está interessado em dar o exemplo, e sim em combater o crime, deter a corrupção, enquanto o Super-homem representa a nobreza para que todos possam seguir seu exemplo. Os dois, nesse sentido, se complementam.

O pequeno Bruce e o pequeno Buda

Se vamos falar de Batman, vale relembrar sua origem. O pequeno Bruce vivia uma vida feliz e contente com seus pais, donos de um império industrial na cidade de Gotham. Um dia, seus pais foram assassinados na saída do cinema por um criminoso. O pequeno Bruce conheceu então a dor e o sofrimento e isso mudou completamente sua vida. Passou a treinar para combater o crime. Agora eu contarei uma outra origem... Siddhârtha Gautama era uma criança feliz no reino de seu pai. Porém, um dia, ao passear pelos jardins floridos reais, conheceu um ancião, um enfermo e um defunto. Entrou então em contato com a dor e o sofrimento e isso mudou completamente sua vida. Fundou o budismo e passou disseminá-lo, no intuito de fazer com que as pessoas pudessem cessar suas dores. Não quero, por meio dessa comparação, dizer que Batman é tão nobre ou importante quanto o Buda. Apenas trago essa semelhança para demonstrar como os princípios do budismo podem ser vistos na figura do Batman. Cada um a seu modo, ambos buscam o ideal de minimizar a dor alheia. Batman sacrifica sua vida milionária, em que poderia ter tudo o que quisesse, fazer o que quisesse, para combater o crime e fazer com que menos pessoas sejam vítimas da violência, como ele foi, quando criança.

A semelhança não para por aí. No filme Batman Begins, Bruce passou por um período de treinamento em algum lugar na ou próximo à China. É notório no filme, nos quadrinhos e em qualquer outro meio em que apareça o domínio do Cavaleiro das Trevas no campo das artes-marciais, outro elemento da cultura oriental, assim como o budismo. E em suas atitudes Batman segue, em certa perspectiva, o Nobre Óctuplo Caminho, que seria, de acordo com o budismo, o caminho que conduz à cessação da dor. Para citar alguns: retas intenções (estar bem-intencionado em todos os atos), retas palavras (não falar nem de mais nem de menos, apenas o necessário), reta conduta (de vida, sem excessos, sem inércia), reta atenção, reta concentração...


Karma, dharma e o Homem-aranha

Karma e dharma são conceitos em geral associados a reencarnação. Contudo, é possível pensar que esses princípios podem ter efeito também em uma única vida. Dharma, em bem poucas palavras, seria algo como a razão da existência de uma pessoa, o caminho a ser seguido. Karma é um efeito gerado a partir do momento em que a pessoa foge desse caminho. Agora peguemos Peter Parker, mordido por uma aranha radiotiva. Ganhou poderes, e logo seu tio Ben avisou: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. E o que Peter fez? Ignorou isso e passou a fazer fama e dinheiro com seus poderes, em cima dos palcos de luta livre. Quando um assaltante passou por ele no corredor, não se deu ao trabalho de tentar detê-lo, embora para ele fosse muito fácil. Mais tarde, o mesmo assaltante, em fuga, acabou matando seu tio. Esse foi o primeiro karma gerado na vida de Peter, um karma com um propósito muito importante: mostrar a Peter qual era sua missão de vida: ser o Homem-aranha. A partir daí Peter passou a combater o crime e outras ameaças com seus superpoderes. O dharma de Peter é ser um super-herói, a paritr do momento em que ganhou superpoderes.

Esse conceito não se restringe à origem do herói. Nas histórias do Homem-aranha são constantes os momentos em que ele pensa em largar o uniforme e levar sua vida, o que seria muito mais cômodo para ele. Cada um cuida da sua própria vida, por que ele tem que cuidar das dos demais? Basta ignorar seus poderes, fingir que não os possui. Esse é o tema central do filme Homem-aranha 2. Entretanto, como retratado no filme e nos quadrinhos que o inspiraram, toda vez que Peter tenta abandonar o uniforme o dever o chama. Alguém se fere, uma ameaça se faz presente, a criminalidade aumenta... Peter é responsável demais para fechar os olhos para isso. Largar o uniforme lhe traz desconforto e sofrimento, não é tão fácil quanto ele imaginava. Novamente, o karma lhe provoca para que volte ao seu dharma, ao seu caminho, e seja o Homem-aranha mais uma vez.


X-men: preconceito e coexistência


O mote principal das histórias dos X-men é claro desde o início: preconceitos. Os mutantes são seres que nascem com superpoderes e por isso são discriminados. Existem outros com superpoderes, mas só os mutantes são discriminados. Não faz muito sentido, não é? Pois é, o preconceito não é algo que faça muito sentido. É a rejeição àquilo que é diferente. É uma aversão a algo que é diferente de você, ou a algo que uma pessoa quer que seja diferente dela. Que sentido existe no preconceito contra pessoas cuja pela é negra? Menos do que em relação a pessoas que podem dominar sua mente com um superpoder, ou destruir sua casa com uma rajada ótica.
Apesar do preconceito, Charles Xavier tem o sonho de uma coexistência pacífica entre mutantes e humanos sem poderes. Fundou uma escola que serve de guia para jovens mutantes, onde eles aprendem não apenas a controlar melhor seus poderes, mas também a ideologia da tolerância, a concepção da harmonia social. Sem preconceitos, sem conflitos, mesmo que pessoas normais (não são todas) tentem apedrejar os mutantes nas ruas. Bater de volta não é solução. Seu arqui-inimigo, Magneto, reage de maneira antagônica. Para ele, é guerra! Se são atacados, os mutantes devem atacar de volta, impor-se, lutar pela comando das sociedades, pois eles, em sua visão, são superiores, o próximo degrau da escala evolutiva. Em outras palavras, enquanto Xavier é um agente da paz e da harmonia, Magneto é um agente da guerra e da imposição.

Os vilões também nos ensinam lições

Qual é a importância dos vilões nas histórias? Por que eles existem? Os heróis nos dão o exemplo a ser seguido, então os vilões nos demonstram o exemplo a não ser seguido. Magneto representa um conceito sofisticado de vilão. Não é perverso, completamente mal. Nem é simples, desses que simplesmente querem dominar o mundo. Magneto tem um ideal e luta por ele. Em sua visão, não há como evitar uma guerra entre humanos e mutantes, e por esse motivo é melhor atacar logo, antes que seja tarde demais. Mais real, não acham? Quando criança, Eric e sua família sofreram nos campos de concentração nazista (como retratado na obra ao lado: Magneto - testamento). Isso lhe gerou um grande trauma e o medo de que acontecesse novamente. A partir do momento em que desenvolveu seus poderes, tomou como meta que nunca mais seria subjugado. Assim, quando a população e o governo, procurando um bode expiatório, passaram a perseguir mutantes, Magneto passou a atacar a sociedade. Sem perceber, Magneto se tornou aquilo que mais temia. Se Hitler é quem personifica o nazismo, com seu discurso de superioridade racial, Magneto tornou-se exatamente o que mais odiava, pregando o discurso da superioridade mutante.
Vilões simples, que são essencialmente maus ou elaboram planos de dominação mundial, são fáceis de se perceber, e é muito difícil que nos identifiquemos com eles. Por outro lado, quando se analisa Magneto e outros vilões mais elaborados, nós podemos ver como uma pessoa pode se tornar um vilão sem querer, sem perceber. Vale lembrar também que o vilão é, por definição, o oposto do herói. Se o herói é definido, entre outras características, por seu altruísmo, o vilão é caracterizado por seu egoísmo.

Além de demonstrar a riqueza que existe nos super-heróis e em suas histórias, essas reflexões servem para que nós nos situemos enquanto cidadãos do mundo e seres humanos. Nos quadrinhos existem basicamente três tipos de personagens: os heróis, os vilões e os figurantes, pessoas de pouca ou nenhuma importância para a história, sempre a mercê dos perigos, esperando serem salvos. Cabe a nós perguntar: com quem que nós mais nos identificamos? E com quem que nós mais queremos nos identificar?

Livros sugeridos
Os super-heróis e a filosofia, William Irwin (coordenação);
Batman e a filosofia, William Irwin (coordenação);
Nossos deuses são super-heróis, Christopher Knowles.

Filmes sugeridos
Homem-aranha (a trilogia);
X-men (a trilogia).

Quadrinhos sugeridos
Terra-X (Marvel);
Marvels (Marvel)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

M S P 5 0 e +

Ano passado Mauricio de Sousa completou 50 anos de carreira. Para comemorar o feito, convidaram 50 artistas brasileiros para fazerem algo, em seu próprio estilo, com os personagens de Mauricio, e o resultado foi o ótimo encadernado MSP 50.
O elenco de peso chamado incluía quadrinhistas, cartunistas, caricaturistas e desenhistas já consagrados e belas surpresas emergentes para homenagear a festividade. Interessante notar que, desde aquela primeira tirinha do Franjinha e Bidu, em 18 de julho de 1959, o próprio traço de Mauricio se modificou bastante, e a maior graça neste encadernado foi ver justamente personagens tão conhecidos nossos em versões as mais diversas possíveis (vejam os diferentes Chico Bento abaixo).

Chico Bento, nos traços de
Vitor Cafaggi, Erica Awano, Lelis,
Benett (em cima) e Julia Bax (os dois de baixo).

Infelizmente alguns artistas não impuseram seu estilo pessoal e resolveram imitar o próprio desenho do grupo Mauricio de Sousa, não sei se por não entenderem a proposta ou se foi a escolha deles para homenagear o desenhista, como foi o caso de Spacca e Antônio Cedraz, em sua história sobre Cascão e a seca. Ou, quem sabe, uma crítica velada? Explico isso melhor no fim do post.
A abertura, com Laerte, já inaugura o uso da metalinguagem que vai permear grande parte da obra. Falando em recorrência, o Astronauta foi, de longe, o mais ubíquo, dentre o rol de personagens a serem utilizados, figurando em 7 das 50 historinhas.

Astronauta, por
Marcelo Campos/Renato Guedes, Jean Okada, e Fábio Moon/Gabriel .


Alguns artistas, obviamente, ficaram em suas áreas e preferiram fazer apenas uma caricatura ou uma charge, parabenizando os 50 anos de carreira de Mauricio de Sousa, o que torna ainda mais rico e diversificado o encadernado, como foi o caso de Dalcio Machado, Baptistão, Fernandes, Cau Gomez e Angeli. Quanto a esses dois últimos, uma consideração extremamente pessoal minha. A charge de Angeli mostra um personagem genérico dele (punk narigudo) com uma tatuagem do Bidu nas costas. E só. Pra mim, ou isso demonstra preguiça, falta de inspiração, ou mesmo falta de interesse de um dos mais conhecidos cartunistas do Brasil. Não sei, talvez seja só eu mesmo, cansado das egotrips mais-do-mesmo semanais de Angeli. Pois bem, comparem com a de Cau Gomez. É o conceito é quase o mesmo, mas a execução. Po, em apenas duas imagens, Cau Gomez consegue nos passar uma verdadeira história, apresentando um personagem com personalidade, ao mostrar um carinha grande sendo tatuado com o rosto da Mônica, e dando toda uma comicidade na sua narração. Excelente! Pessoalmente acho que Angeli deveria tomar o exemplo de seu colega... Valeu, Cau, muito boa!
Horácio,
o tiranossauro herbívoro existencial,
de Raphael Salimena.

Agora, algumas rápidas considerações sobre algumas das histórias destacadas e seus autores:

O Horácio de Raphael Salimena é visualmente muito massa, e a história não deixa por menos o tom que o dinossaurinho verde sempre teve. Daniel Brandão nos traz uma nostálgica visão sobre os 50 anos com toda a turma da Mônica já envelhecida. Lelis apresenta um estilo de pintura muito bem ilustrado. O traço meio "sujo" e underground de Orlandeli casou bem com a figura do Capitão Feio, numa história bem atual sobre seu sumiço e... retorno?
Capitão Feio e sujo pelo traço "feio e sujo" de Orlandeli.


Antonio Eder se permite uma auto-homenagem (como já havia feito anteriormente com o Gralha) bem divertida e com muitas referências a elementos astrológicos, matemáticos, abstratos, brincando bastante com a própria linguagem dos quadrinhos. Muito boa!

Antonio Eder subvertendo,

mais uma vez, a ordem de leitura dos quadrinhos.


Ivan Reis, desnecessário dizer, tão acostumado com capas e colantes, fez questão de mostrar super-heróis em seu conto, e é claro que eles não eram páreo para uma menininha dentuça e seu coelhinho... falando nisso, o grande desenhista da DC nos mostra uma Mônica e uma Magali lindas! (diferentemente do coitado do Cebolinha...)
Mônica e Magali,
belíssimas na arte de Ivan Reis, e um Cebolinha nem tão belo assim...


Yabu também puxa uma sardinha pra seu lado e apresenta um diferente conceito sobre a turma, interessante, sobre um futuro distópico e cheio de anagramas, hehehehe. Muito boas também as aparências de Franjinha e Marina mais realistas, por Otoniel Oliveira, falando justamente sobre desenhos.
Yabu inovando conceitos e brincando com anagramas
sobre a menina mais forte do mundo e o dono da lua.


Uma das melhores versões deste encadernado, na minha humilde opinião, foi a de Samuel Casal para a turma do Penadinho. Invertendo as cores de modo a que as sarjetas (espaço entre os quadrinhos) e a própria página ficassem em preto, conseguiu imprimir um tom mórbido ao pessoal do cemitério, muitíssimo bem estilizados, homenageando ainda el dia de los muertos mexicano. Riquíssimo. Excelente!

Todo o estilo de Samuel Casal para a turma do Penadinho.


Pra quem curte o estilo mangá, Erica Awano faz um belo trabalho, limpo, bonito. Fábio Lyra nos presenteia com um conto psicodélico, lisérgico, bem anos 70, com Rolo, Tina e o Louco. Falando no Louco, sempre adorei o personagem, e fiquei feliz em ver que muitos quadrinhistas representaram-no neste especial de aniversário, como Jean Galvão, ou Laudo, ou mesmo em participações especiais como o "curupira" da história de Julia Bax. Ainda sobre insanidades, há que se destacar o trabalho louco de Rafael Sica com o Cebolinha. Achei meio sinistro, e até meio pesado perto do tom das outras histórias, mas essa é apenas uma interpretação que tive. O conto é interessante também por isso, por abrir várias possibilidades, e não consigo deixar de imaginar uma cebola de verdade ao ver os olhos espiralados do Cebolinha...
Cebolinha mentalmente perturbado,
numa história - curiosamente, sem o Louco - de Rafael Sica.


O grande Fernando Gonsales, de quem sou fã confesso, famosíssimo por Níquel Náusea, sacaneou o próprio traço para mostrar como, mesmo não sabendo desenhar, tem sempre alguém, em algum lugar, desenhando a Turma da Mônica por aí. E quem é que nunca fez isso quando lia esses gibis na infância? Falando em infância, me chamou bastante atenção a turma do Cabeça Oca de Christine Queiroz, que não conhecia. Adorei a personagenzinha da Mariana: "A Maiana é a Monca!", muito bom! A história de Guazzelli também é sensacional. Sutil, inovadora, não apresenta nenhum personagem de Mauricio de Sousa, mas faz uma ótima homenagem envolvendo o planeta Marte... E finalmente, mas não menos importante, a belíssima história, no belíssimo traço de Vitor Cafaggi (do excelente Puny Parker), sobre um passarinho verde!

A singela e sensível homenagem de Vitor Cafaggi a Chico Bento.



A variedade de estilos é ponto alto, seja no traço anguloso e retilíneo de José Aguiar, seja no curvilíneo e redondo de João Marcos, seja no preto e branco de Mascaro, nos tons pastéis de Fido Nesti ou mesmo no colorido de Jô Oliveira.
O problema da obra, belíssima em seu conjunto, concepção e realização, é devido a toda a polêmica que envolve os Estúdios Mauricio de Sousa e a questão dos créditos de seus trabalhos. Apesar de possuir mais de 50 roteiristas e desenhistas em sua equipe, nenhum destes é creditado como autor ou artista nas revistas da Turma da Mônica. Deem uma olhada: em todas elas há apenas a assinatura de Mauricio de Sousa (apesar de, há anos, Mauricio ser criticado por ter abandanado o desenho para se tornar unicamente empresário). Questionado sobre isso, Mauricio se defende alegando que isso é para evitar acirramento de vaidades entre os da sua equipe, e também devido a problemas de copyright, pois, segundo o próprio, "um artista tendo seu nome na frente de um personagem pode, mais tarde, reclamar algum tipo de direitos sobre ele. Claro que perderá na justiça, mas é algo que não há necessidade no meu pessoal. Assim, nas minhas revistas isso não acontecerá." Engraçado que, há décadas, as grandes editoras norte-americanas trabalham indicando os devidos créditos a seus autores...
O traço torto de Fernando Gonsales
é explicado (?) em sua participação no especial de 50 anos.

Por isso minha dúvida lançada lá em cima: teriam alguns artistas aproveitado a deixa e feito uma leve cutucada na própria edição de homenagem a Mauricio de Sousa? Teria sido por isso que Fernando Gonsales, na voz de Bidu, teria escrito "Na verdade, sou um falso Bidu! Não fui desenhado nos Estúdios Mauricio de Sousa!"? Bom, talvez não.
E a ironia cabe aqui. O mais interessante do encadernado MSP 50 é justamente vermos ilustrações originais, versões novas, com traços diferenciados e pontos de vista tão singulares, com conceitos novos, de personagens tão conhecidos, pelas mãos de vários e competentes artistas nacionais, devidamente creditados.

Independente dessa polêmica toda, Mauricio de Sousa ainda é, de longe, o mais bem-sucedido quadrinhista brasileiro, e sua Turma da Mônica Jovem foi a maior jogada editorial de 2008, tornando-se indiscutivelmente o maior sucesso do mercado de quadrinhos brasileiro nos últimos anos, superando as vendagens inclusive da primeira tiragem da Turma da Mônica na década de 70.

Domingo, dia 15 de agosto - ontem! -, foi lançada durante a Bienal do Livro em São Paulo a coletânea MSP + 50, reunindo outros 50 nomes dos quadrinhos nacionais para darem suas versões e visões sobre os personagens de Mauricio de Sousa. Se repetir o nível da primeira, vai ser muito bom, e eu não duvido de que seja! Prévias aqui e aqui.





-Cube papercraft sugerido: Horácio (feito por mim mesmo, hehehe).

-Blog sugerido: Horacio Esperante (em português e em esperanto, feito por um colega brasiliense, para quem gosta de Horácio e quiser aprender um pouco mais sobre la universala lingvo).

-"HQ digital" sugerida 1: homenagem da Turma do Penadinho à morte do Michael Jackson (prévia oficial não finalizada disponível online).

-"HQ digital" sugerida 2: conto sobre encontro entre Franjinha, Astronauta, Piteco e outros (prévia não oficial não finalizada disponível online).

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Metáfora espanhola

  Eu me perdi em Madri. No caminho para me encontrar, dei a sorte de passar em frente a uma loja especializada em quadrinhos. Pedi que me mostrassem revistas de autores espanhóis. Entre as opções, lá estava Paco Roca...


Perdido

  O encadernado que levei era Las Calles de Arena, que começa justamente com o personagem principal tentando pegar um atalho para chegar a um lugar mais depressa. Ele se perdeu exatamente da mesma maneira que eu. Só que não consegue sair dali por um bom tempo. Lá começa a passar por uma série de acontecimentos absurdos e personagens surreais. Essas histórias, que compõem sua jornada para sair do bairro, são extremamente metafóricas. Uma das primeiras pessoas que ele encontra é um senhor que está tentando sair do bairro, assim como ele, só que há anos. Tem a filosofia de que "es muy importante la planificación", no intuito de estar pronto para tudo. E, por ter medo de fracassar, ele nunca começa a viaje, pois nunca acredita estar plenamente preparado.
Em um outro momento, o personagem central (que não se lembra do próprio nome, pois saiu de dentro dele um doppelgänger, um ser que perdeu sua identidade tentando achar a lógica do barrio e por isso se dedica a robar la personalidad de los demás) encontra um vampiro, vivendo há séculos e colecionando coisas. Este novo personagem é absolutamente apegado a todas as bugingandas que guarda.  Tem por todas, como diz, “mucho aprecio”. Considera todos os objetos recordações preciosas para sua vida.
 
  À medida que a história vai avançando, percebe-se que uma certa mulher parece ter várias gêmeas, que executam diversos serviços básicos no bairro. Depois o personagem principal descobre a história de um coronel, cuja mulher morreu, e ele reproduziu um clone dela. Entretanto, o clone não o amava. Então ele continuou a reproduzi-los, chamando a todas de Eva...

  Cada história, cada personagem tem sua mensagem. E mesmo dentro delas existem frases extremamente interessantes e reflexivas, como quando o vampiro diz que não fez muita coisa durante seus séculos de vida, pois tem todo o tempo do mundo; e a senhora que, perguntada qual religião segue, diz que faz rituais a uns, preces a outros, pois nunca se sabe cuál puede ser al final la verdadera.

Arrugas

  O motivo que me convenceu a levar a história do Paco Roca foi porque ele ganhou o prêmio espanhol de quadrinhos em 2008 por uma obra chamada Arrugas. Então pensei: deve ser boa também. Minha mãe voltou da Europa agora e me trouxe o encadernado de presente. A história é bem mais curta, mas tem a mesma qualidade e estilo do autor.
  Arrugas fala sobre envelhecer. O personagem principal, Emilio, é levado a um asilo logo no início da história. Ele sofre de Alzheimer. Porém, além de tratar da doença na obra, o autor a usa para falar da velhice. Ele convive com diversos outros idosos, que possuem outras doenças. Porém, a metáfora é a de que todos eles vivem no passado. Pellicer, por exemplo, vive falando da época em que foi atleta olímpico, a medalha de bronze o tempo inteiro no peito, enquanto anda de um lado para o outro... com a ajuda de um andador. A senhora Rosário acredita a todo instante estar dentro de um trem a camino de Estambul.

  A história também é repleta de frases interessantes, reflexões sobre a vida e sobre envelhecer. Miguel, melhor amigo de Emilio no asilo, e um tanto crítico em relação a tudo, questiona a necessidade de tantas pílulas e dietas e proibições, dizendo ser apenas o prolongamento de uma malvivir, já que não fazem nada no asilo além de comer, dormir e se prostrar em frente a uma televisão que exibe programas que nenhum deles quer ver.

  A qualidade da obra de Paco Roca, que agora considero como um dos melhores autores de história em quadrinhos que conheço, está na metáfora, está no detalhe, nas frases. Um resumo de suas histórias seria talvez desinteressante, pois é no transcorrer delas que se vê a riqueza que têm. Para gostar de Paco Roca, é necessário lê-lo. Arrisco-me também a dizer que, se ler, vai gostar.